Num local como Fátima e numa reunião de médicos de família (MF), seria impossível encontrar melhor fecho para o Encontro de Outono da APMGF do que a conversa informal do próximo dia 23, ao final da manhã e que terá como convidada Ana Luísa Castro, religiosa na Congregação Aliança de Santa Maria e médica de Medicina Geral e Familiar (MGF). Para já, aqui fica um aperitivo do que poderá ser um momento muito especial, prova de que espiritualidade e ciência podem confluir para o bem de quem necessita de cuidados.
Para muitas pessoas, pode parecer irreconciliável uma vocação espiritual e a atividade clínica… como encara pessoalmente esta dupla missão?
Irmã Ana Luísa Castro – No tempo de Jesus, a sua atitude de proximidade para com os doentes foi considerada quase subversiva. Estávamos numa sociedade que tratava de uma forma extremada e muito negativa os doentes, marginalizando-os. Jesus veio trazer uma outra visão sobre a doença e sofrimento, de tal modo que falamos de um amor preferencial para com os pobres. A partir daí, a compaixão para com os doentes tornou-se uma marca cristã. O cuidado espiritual não só não é irreconciliável com os cuidados de saúde como estes nascem daqueles. Ou seja, são dimensões que se completam e Jesus foi o primeiro a, digamos que, casar essas duas dimensões. Se calhar é uma relação que hoje está em crise, ou em divórcio, para usar essa metáfora, talvez por um certo reducionismo cientifico da medicina. Mas esse reducionismo traz as suas consequências negativas e não deixa de ser interessante que parte dos critérios de qualidade de uma instituição de saúde é o tipo de apoio espiritual que oferece. A vocação espiritual e a prática médica podem ser aliados muito benéficos para os doentes e eu procuro viver essa dupla dimensão assim, como uma complementar da outra. A vocação religiosa ajuda-me a procurar ter um olhar compassivo e paciente para com todos os que encontro, como se fossem o próprio Jesus, e a prática médica ajuda-me a ter as ferramentas necessárias para ajudar.
Acredita que a circunstância de ser religiosa e integrada numa congregação a torna uma médica de família diferente? Se sim, em que dimensões?
Acredito que cada médico, com as suas particularidades, tem algo a oferecer aos seus utentes, de único. Acho que a prática médica tem sempre algo de marca pessoal do médico, como qualquer arte. Como religiosa numa Congregação, acredito que há algo de espiritual e religioso que faz parte dessa marca pessoal, que pode ser benéfico para os doentes.
João Paulo II dizia que “o homem sofre de diversas maneiras, que nem sempre são conhecidas pela medicina, nem sequer pelos seus ramos mais avançados. (…) Trata-se, de facto, da dor de tipo espiritual e não apenas da dimensão «psíquica» da dor, que anda sempre junta tanto com o sofrimento moral, como com o sofrimento físico”. Há uma dor de tipo espiritual diante do fracasso, da doença, da dúvida, enfim, de algo negativo, e essa dor só pode ser cuidada, tratada de forma espiritual…
A minha ideia de Médico de Família é um médico particularmente próximo de cada utente, de cada família. Quando temos um ficheiro de utentes temos de conhecer o nosso ficheiro, e depois, nas consultas, vamos fixando os nomes e as histórias das famílias que são nossas. Para mim, há um encanto especial nessa missão. Considerar neste conhecimento e neste cuidado a dimensão espiritual, parece-me essencial.
Parece-me que não é difícil, mesmo para um não crente, reconhecer que o facto de acreditarmos em algo que nos permite ultrapassar as barreiras de tempo e de espaço, em algo que dá esperança, que dá sentido ao aparente absurdo da vida, ao quotidiano, não é difícil reconhecer que isso traz uma maior resiliência, uma outra capacidade para enfrentar situações limite como a doença e a morte. No entanto, de facto, os estudos que nos deixam mesmo mais surpresos, mesmo entre os crentes, são os que mostram que a religiosidade tem impacto nos mecanismos biológicos, fisiológicos, imunológicos do corpo humano. O que é certo é que encontramos estudos que falam não só na interferência na imunidade, mas a muitos outros níveis. Alguns estudos verificaram uma menor mortalidade por neoplasias ou doenças cardiovasculares. Fazer a relação causal entre prática religiosa e beneficio direto na saúde é difícil, porque há muitas variáveis a considerar, ainda assim, o certo é que há uma relação, há benefício, há impacto positivo na saúde física.
Julga que as organizações religiosas e os serviços de saúde, no nosso país, poderiam colaborar de uma forma mais efetiva em muitas áreas, em prol do bem-estar das populações?
Voltando à história dos cuidados de saúde, a tendência foi de atribuir, senão exclusivamente, pelo menos maioritariamente, às instituições religiosas o encargo de cuidar dos doentes. Durante muitos séculos eram as congregações e ordens religiosas que mais se dedicavam ao cuidado dos enfermos. A medicina e a religião andaram de mãos dadas ao longo dos tempos.
Com o desenvolvimento da medicina e com o processo de secularização das sociedades, de facto, o cuidado dos doentes foi sendo cada vez mais assumido pelas instituições públicas financiadas pelo Estado, ou por instituições privadas suportadas pelos próprios doentes. Ainda assim, muitas instituições ligadas à Igreja, continuam a ter um papel preponderante nos cuidados de saúde, como por exemplo as Misericórdias… e entre tantos outros.
Eu creio que essa colaboração continua a ser muito importante a vários níveis, quer na área da prevenção, na deteção de situações de risco, por exemplo, na manutenção da saúde mental, na promoção de estilos de vida saudáveis, quer na área dos cuidados em si, pela agilização de meios de apoio, pelo suporte comunitário- Enfim, o diálogo e a entreajuda entre as várias instituições é sempre uma mais-valia.