Cuidados de Saúde Primários entre as montanhas austríacas: Relato de experiência do Pre-Conference Exchange Program do 8º Fórum do EYFDM

Na semana de 9 a 13 de abril de 2024, participei no 8º Fórum do European Young Family Doctors Movement (EYFDM) em Viena. Tive o privilégio de ser incluída no programa Pre-Conference Exchange, organizado pelo próprio EYFDM e pela Young Austrian Family Doctors Association (JAMÖ), que decorreu nos 3 dias que precederam o congresso. Acompanhei uma médica de família, ou General Practitioner (GP), na cidade de Bischofshofen, na região montanhosa de Salzburgo e o objetivo deste programa era experienciar o dia-a-dia no seu contexto profissional.

Inicialmente, todos os participantes do programa puderam assistir a uma breve apresentação online acerca do sistema de saúde austríaco, articulação dos cuidados de saúde primários (CSP) com os secundários e estruturação do internato de 4 anos de Medicina Geral e Familiar (MGF) ou Allgemeinmedizin. Ao contrário do internato em Portugal, na Áustria a formação é feita quase integralmente em estágio com outras especialidades e apenas 6-9 meses decorre nos CSP. O sistema de saúde austríaco combina o financiamento público com o privado, sendo que a esmagadora maioria dos GPs são self-employed, ou seja, trabalham nas suas próprias clínicas, gerindo-as, juntamente com outros colegas ou individualmente. Excetuando alguns casos que incluam procedimentos específicos ou métodos complementares de diagnóstico não comparticipados, a consulta é gratuita para o utente, havendo um valor pré-definido que é reembolsado pelo estado ao médico. Quanto à medicação, se for comparticipada, tem um custo para o utente de até 7,10€.

Fiquei alojada em casa da GP que me foi atribuída em Bischofshofen, pelo que estes dias se revelaram intensos na partilha do seu quotidiano. Pude visitar alguns recursos da comunidade, falar com locais e experimentar os pratos típicos da região. Bischofshofen é uma pequena cidade com cerca de 10.300 habitantes, com uma população de classe média-baixa, constituída maioritariamente por comerciantes e agricultores. A médica trabalhava numa clínica pessoal e individual, gerindo-a. O seu horário assistencial tinha 20 horas, sendo que o restante tempo poderia ser ocupado com visitas domiciliárias ou a lares de idosos. Não possuía uma lista de utentes fixa, uma vez que, na prática, poderia observar pessoas não residentes na área e os próprios utentes poderiam ser atendidos noutra clínica, se o desejassem.

Na clínica, a médica tinha a colaboração de três “doctor’s assistants”. À semelhança de países europeus, estas “assistentes” têm funções que vão além do trabalho administrativo do secretariado clínico, podendo fazer colheitas de sangue, administração de vacinas ou de terapêutica intravenosa (após indicação da médica) ou cuidados de penso, por exemplo. O facto de estas funções não estarem a cargo de profissionais de Enfermagem foi algo que me surpreendeu face ao que ocorre em Portugal. Destaco ainda, o facto de as assistentes também poderem renovar receituários crónicos, desde que os mesmos não incluam fármacos opióides ou antibióticos, o que requereria a aprovação prévia da médica. A clínica dispunha de análise laboratorial imediata de hemograma e Proteína C reativa e, se fossem incluídos outros parâmetros, ocupava-se, ainda, do transporte das colheitas diretamente para o laboratório mais próximo.

As manhãs eram muito preenchidas e começavam às 7h30 com consultas programadas até às 10h00, sendo o restante tempo dedicado a doença aguda. O ritmo e duração destas consultas foi, para mim, surpreendente, chegando à observação de, sensivelmente, 40 utentes numa manhã. A generalidade das consultas a que assisti foram pouco complexas, raramente com mais do que um motivo por consulta e, ainda assim, as expectativas dos utentes foram sempre cumpridas. Ao contrário do que acontece em Portugal com o Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil, na Áustria há consultas preconizadas aos 0, 6, 8 e 12 meses e 2, 3, 4 e 5 anos de idade. Algo semelhante acontece no seguimento das grávidas, consultas de Planeamento Familiar (PF) ou de Saúde da Mulher, que ficam, em regra, a cargo da especialidade de Ginecologia e Obstetrícia. Quanto às consultas de outras especialidades, os utentes podem ser referenciados pelo seu GP ou efetuar a marcação autonomamente.

No último dia, participei na reunião clínica mensal que os sete GPs da região organizam, para a qual convidam colegas de outras especialidades para esclarecimento de dúvidas ou discussão de casos clínicos. Nessa tarde, a sessão foi destinada à apresentação dos CSP portugueses e comparação com os austríacos, que fiz juntamente com a colega portuguesa, também participante no programa na região de Salzburgo.

De regresso a Viena, o Pre-Conference Exchange culminou numa reunião entre todos os participantes. Fez-se uma reflexão e troca de impressões sobre as experiências nas várias clínicas e comparação do sistema de saúde austríaco com os dos respetivos países de origem dos participantes. Foi interessante conhecer outras perspetivas sobre algumas particularidades do sistema austríaco que uns identificavam como positivas e outros consideravam desvantajosas, quando comparadas com o sistema de saúde do seu país.

O 8º Fórum do EYFDM decorreu nos dias 12 e 13 de abril, na Tech Gate na cidade de Viena, tendo contado com a presença de médicos internos ou recém-especialistas de 31 países, sendo Portugal o 2º país com maior número de inscrições (!). A meu ver, o programa do congresso marcou pela diferença na medida em que a maioria das conferências, comunicações orais, mesas redondas e workshops foram da autoria dos participantes, o que trouxe um grande dinamismo e diversidade aos temas selecionados. Destaco a mesa redonda “Fakenews in Family Medicine” e a conferência “The Future of General and Family Medicine” que abordaram desafios e problemáticas muito atuais da nossa especialidade, transversais nos vários países da Europa. Foi um fórum com um ambiente muito aberto, preenchido por intensas partilhas de experiência e que contou com um programa social muito rico.

Participar neste programa superou as minhas expectativas e regressei a Portugal com motivação redobrada. Como futura médica de família, mostrou-me que existem outras formas de trabalhar, havendo sempre espaço para melhorar a nossa prática. De facto, trata-se de um sistema de saúde muito diferente, com vantagens inegáveis como a facilidade de acesso, eficiência, desburocratização do trabalho médico e liberdade na gestão do próprio serviço. Por outro lado, fez-me valorizar aspetos positivos da MGF praticada em Portugal, tais como as consultas de Saúde Materna e de PF, o que mostra a capacidade de acompanhar utentes em várias fases da vida. Sem dúvida que esta experiência marcou o meu percurso e recomendo a colegas internos a participação em iniciativas semelhantes.

Laura Fortuna
Unidade de Saúde Familiar das Conchas, ULS Santa Maria

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