Lisboa, 11 de maio de 2022 – A ACSS publicou, recentemente, bilhetes de identidade para novos indicadores, que estarão em avaliação pelo Ministério da Saúde, para guiar o novo regime remuneratório das USF modelo B. Um destes indicadores é o de índice de acompanhamento adequado em planeamento familiar.
Após análise dos vários pontos enunciados neste indicador, a APMGF surpreende-se, entre outras, com a inclusão de uma dimensão relacionada com a interrupção voluntária da gravidez. Esta novidade espanta mais ao estar associada a uma penalização ao profissional de saúde que acompanha a mulher que opta por esta decisão. Além desta dimensão, inclui também a monitorização de infeções sexualmente transmissíveis, com enfoque essencialmente nas mulheres, uma vez que o indicar apenas terá em conta as mulheres em idade fértil inscritas na unidade funcional, para efeito de atividades específicas.
Embora a APMGF perceba a necessidade de serem aferidas boas práticas em saúde na área do planeamento familiar a nível dos cuidados de saúde primários, considera que este não é o caminho. Por um lado, estes indicadores não avaliam boas práticas em planeamento familiar, por outro, nenhuma avaliação de desempenho se pode sobrepor aos direitos individuais de uma pessoa. Provavelmente procura medir-se aquilo que não se pretende. A interrupção voluntária da gravidez é um direito das mulheres, previsto na lei e adquirido após referendo nacional. Foi, à época, um passo importante no respeito pela dignidade e a autonomia das mulheres, contribuindo para o cumprimento pelo Estado da sua tarefa fundamental de promover a igualdade entre mulheres e homens.
A realidade portuguesa, apresentada nos diversos relatórios da DGS, é que, desde a implementação da lei sobre a interrupção voluntária da gravidez, o número de interrupções de gravidez tem vindo sucessivamente a decrescer. Mais ainda, os últimos dados sobre este tema mostram-nos que desde 2011 não houve qualquer registo de morte de mulher por interrupção voluntária da gravidez. Surpreende, portanto, que os órgãos decisores determinem que este assunto deva ser alvo de apreciação quando se avaliam boas práticas e desempenho dos profissionais dos cuidados de saúde primários. Estarão a querer dizer que a responsabilidade por esta decisão deverá ser imputada, ainda que em parte, aos profissionais de saúde? De igual modo, a APMGF também não considera aceitável que a monitorização das infeções sexualmente transmissíveis se destine única e exclusivamente às mulheres. Tal contribui para a perpetuação de estereótipos de género na sexualidade das mulheres, impondo-lhes o ónus das doenças venéreas.
Ainda que a motivação para estas avaliações seja o aumento da acessibilidade às consultas de planeamento familiar, na nossa opinião, não se justificam para alcançar tal objetivo. Para aumentar acessibilidade são necessários mais médicos de família, o que se prende com a capacidade, ou incapacidade, do SNS em reter os seus profissionais de saúde. Por outro lado, a nova dimensão relacionada com a interrupção voluntária da gravidez associada a uma conhecida penalização, com um inequívoco juízo moral, agora conhecido pela população, pode promover um maior afastamento das mulheres dos cuidados de saúde primários. Em última análise, pode mesmo contribuir para que se diminuam as interrupções de gravidez em segurança, aumentando os riscos para a vida das mulheres.
A ideologia de género, patriarcal, inerente a estas medidas é inaceitável e, como tal, estas devem ser retiradas do indicador mencionado. Não só importa não cairmos em conceitos paternalistas da prática médica, como não permitirmos que determinações superiores possam colocar em causa direitos individuais adquiridos e incorram em atitudes discriminatórias.