29º Encontro Nacional de Medicina Geral e Familiar
 
Rui Cernadas:
O problema, em Portugal, é tornar-se complicado o que deveria ser simples
 
Em abstracto, Rui Cernadas, vogal do CA da ARS Norte, considera que o modelo ACES para os CSP é claramente mais indicado do que o modelo ULS, “sobretudo porque enterra, em definitivo, o sistema das sub-regiões e, depois, porque o articula e integra com a comunidade, aproximando-o das populações e dos clientes dos serviços disponibilizados”. O médico de família, que irá participar na mesa redonda do 29º Encontro sobre gestão e integração de cuidados de saúde, defende ainda que “o problema em Portugal, mais outro problema, é o da burocratização e o de tornar-se complicado o que deveria ser simples. Temos estruturas verticais a mais, sistemas de informação que não falam, nem se ligam entre si. Todos o sabem, de há muito. Cuidados de saúde primários, hospitais e cuidados continuados deveriam e estarão integrados quando se puder completar o processo reorganizativo em curso”.
 
Jornal Médico de Família –  A Organização Mundial da Saúde refere vários tipos diferentes de integração de cuidados de saúde: organizacional, funcional, de serviços, clínica, normativa e sistémica. Portugal tem privilegiado a integração organizacional em unidades locais de saúde (ULS) e não a integração clínica. Concorda?
 
Rui Cernadas –Portugal é um país muito curioso, além de desgraçado… Bairrismos, feudos, tradições, municipalismos, divisões, quintas e quintais… Ainda por cima, quando a História nos lembra que até já dividimos o mundo inteiro com Castela, em Tordesilhas! Isto para dizer que, para além disto tudo, poderemos reconhecer e identificar condicionantes importantes para explicar soluções diversas. Aliás, Ortega e Gasset dizia que a circunstância faz toda a diferença. E a circunstância não depende da dimensão nem dos recursos, nem do território, nem dos meios, mas da qualidade de gestão, da estratégia e motivação das equipas e de quem as conduz.
Ora, a questão em volta das modalidades de integração de cuidados de saúde é, em si mesma, uma questão circunstancial. Se assim não fosse, a escolha de uma modalidade ou de outra, garantiria o sucesso do resultado e não é isso o que acontece.
A modalidade pode explicar resultados, mas num bom e num mau sentido, em simultâneo, consoante as equipas que levam a cargo o seu fabrico e a sua administração. Não sei com franqueza se alguma das vias de integração será melhor, por si mesma, do que outra. Por isso, acredito que haverá ULS com excelentes desempenhos e ULS sem eles… Como sei que haverá ACES muito bons e outros não. E Hospitais também. Coisa diversa é aceitar que um determinado modelo seja tido pelo ideal ou o mais adequado ao caso português. Veja-se como, por exemplo, o modelo ULS se tornou de repente e como por encanto, o modelo “escolhido” pelos senhores deputados que, com alguma recorrência, o propõem em vários locais. Mas na verdade, não existe qualquer validação do modelo, nem muito menos qualquer estudo comparativo com outro modelo organizacional! Em abstracto, o modelo ACES para os CSP é claramente mais indicado, sobretudo porque “enterra”, em definitivo, o sistema das sub-regiões e depois porque o articula e integra com a comunidade, aproximando-o das populações e dos clientes dos serviços disponibilizados.
 
A gestão conjunta de centros de saúde e hospitais é considerada, nalgumas área da Medicina Familiar, como “uma ilusão sem evidência”. Parece-lhe que esta afirmação está correcta?
 
Não estou de acordo, admitindo porém que, em algumas situações, isso se possa ter verificado. No caso do Norte, temos duas ULS a funcionar; uma delas a de Matosinhos, a primeira do país. Isso não demonstrou que a gestão comum fosse inviável, difícil ou a tal “ilusão sem evidência”. De resto, a própria oferta assistencial dos CSP está bem estruturada numa rede de unidades funcionais em regime USF, com os profissionais bem inseridos e motivados. E o seu grau de relacionamento e conhecimento inter-pares hospitalares ou as facilidades para referenciação de utentes, é bem maior do que sucede na generalidade.
 
A ULS de Matosinhos, que integra o Hospital Pedro Hispano e vários centros de saúde daquela região, é a mais antiga, de facto. Existem avaliações do impacto deste modelo e, nomeadamente, se funciona melhor, se apresenta melhores resultados económicos e em saúde, assim como ao nível da satisfação de utentes e profissionais? É que, se existem, não são conhecidas.
 
O facto de se ignorar muita coisa não significa nada a não ser que se ignora. Nem os resultados meramente ou exclusivamente económicos chegam ou deveriam chegar para demonstrar resultados. Julgo que o aspecto dos ganhos em saúde ou, se preferir, das mais-valias em saúde, é muito mais interessante, a par da discussão do princípio custo/benefício. O sistema de dotação orçamental das ULS baseia-se na capitação por massa de residentes, definindo valores de pagamento que não favorecem o atendimento assistencial dos utentes não residentes do território da ULS em apreciação. O caso da ULS Matosinhos é, a esse título, paradigmático. A população a que se destina e pela qual é retribuído é, claramente, inferior à da área geo-demográfica que serve. E isso descapitaliza a ULS. Mas os números a que se refere, alguns números, poderão ser consultados no site da ACSS.
 
Pensar a saúde de uma forma sistémica obriga a um aprofundamento da interligação entre os centros de saúde e, nomeadamente, os hospitais, os cuidados continuados, todos os serviços da mesma comunidade. Mas – insisto – é este o modelo mais adequado?
 
O problema, em Portugal, mais outro problema, é o da burocratização; o de tornar complicado o que deveria ser simples. Temos estruturas verticais a mais, sistemas de informação que também não falam, nem se ligam entre si. Todos o sabem, de há muito. Cuidados de saúde primários, hospitais e cuidados continuados deveriam e estarão integrados quando se puder completar o processo reorganizativo em curso. Um doente numa cama hospitalar não deve permanecer sem razão clínica forte, quando tem a jusante camas de cuidados continuados com qualidade e a mais baixo preço, abrindo lugares a outros doentes carenciados. Como um doente dos CSP não deve ser remetido, de modo anónimo e indiferenciado, para um médico hospitalar, quando somos um país europeu que brilha em número de telemóveis e nets… O esforço deve convergir para um trabalho em rede, envolvendo os profissionais e as instituições. Há coisas… Veja quantos de nós, quando visitam uma unidade funcional a 200 ou 300 km de distância, se podem identificar como profissionais dum mesmo SNS e porventura até duma mesma ARS? Não se estimulou sequer o conceito interno de equipa. A adequação a um qualquer modelo organizativo condenado ao sucesso tem de começar pela construção do espírito de grupo, o vestir da camisola e o orgulho em ser um deles! 
 
Em vez de trabalho conjunto, o que acontece, na maioria dos casos, é que a Medicina Familiar é “engolida” pela máquina hospitalar… Em países com sistemas de saúde de referência, como o Reino Unido, a aposta visa a integração clínica e não a gestão conjunta…
 
Durante muitos anos, os médicos de MGF viveram “ensombrados” ou “envergonhados” face aos seus colegas hospitalares, como se fossem médicos de 2ª classe. Eram até tratados como os “médicos da Caixa”, na linha dos velhinhos Serviços Medico-Sociais. Creio que já não é essa a realidade de hoje. As estruturas físicas melhoraram muito, a informatização foi conseguida, a renovação da carreira está em curso, a satisfação das autarquias e das populações está conseguida em largas áreas do território e a reforma dos CSP é apontada como um exemplo e o modelo USF validado nos termos do memorando financeiro com a Troika. Não me parece nada que a MGF seja engolida por qualquer “máquina hospitalar”. Até diria que temos pouca carne e muito osso, tornando-nos, em termos de MGF, como pouco apetecíveis. O gestor do doente deve ser o médico de família e deveremos assumir, como plano estratégico, esse caminho, abandonando o que sempre me irritou que era o de ser chamado de “porta de entrada”. O nosso papel é bem dentro do sistema de saúde, enquanto gestor ou zelador ou curador do doente e não o de qualquer porta ou portão. A instituição Hospital até lucraria – e aí sim em termos económicos – com uma gestão adequada, correcta e “limpa” no percurso intra-hospitalar pelo médico de família. Aliás, isso estava previsto, desde logo quando se consagravam aos médicos de família horários não assistenciais ou para acompanhamento hospitalar de seus utentes… Mas com efeito, gestão conjunta não significa integração clínica. É por isso que acredito que a integração clínica, para além de promover a defesa do doente, facilita a articulação entre os níveis de cuidados assistenciais e assegura o controlo dos gastos. Na ARS Norte, temos já alguns exemplos de ligação informática entre unidades de CSP e hospitais, caminhando nesse sentido. E é função da ARS Norte promover no seu espaço de trabalho todos os esforços que, pelo contrário, levem os hospitais para as unidades de saúde, nomeadamente em termos de ambulatório, consultoria ou consulta de triagem para referenciação, enfermagem diferenciada ou formação pós-graduada. Também aqui já temos alguns passos dados. 
 
Qual é a situação das várias ULS do Norte… Por exemplo, a ULS do Nordeste?
 
A situação das ULS do Norte é geograficamente a Norte… Bem a Norte, a do Alto Minho, mais a Sul, na área metropolitana do Porto, a de Matosinhos e agora, no Nordeste, a ULS Nordeste, a empossar brevemente pelo ministro da Saúde. Nesta, em particular, quero lembrar-lhe, como problemas fulcrais, a interioridade agravada pelas obras na estrada principal entre Vila Real e Bragança e onde se posicionam os pólos de Mirandela e Macedo de Cavaleiros, a extensão do distrito de Bragança, todo ele integrante da ULS, a falta de médicos ainda em diversas especialidades, incluindo a MGF e o envelhecimento e consequente empobrecimento das populações. Deixe-me dar-lhe uma última nota: Preocupa-me sempre que uma decisão política não seja por regra acompanhada do estudo de impacto económico, designadamente no bolso dos contribuintes. E o pior que pode suceder, é o ruído de fundo que se gera em torno de decisões técnicas, quando estas têm, ou deveriam ter, esse estudo financeiro associado. Talvez resida aqui a razão para a crise financeira que o país atravessa.
 
 Adelaide Oliveira
 
NOVO TEXTO
29º Encontro Nacional de Medicina Geral e Familiar
Mais de 30 workshop em quatro dias
 
Durante os quatro dias do 29º Encontro Nacional de Medicina Geral e Familiar vão ter lugar cerca de 30 workshop, muitos deles em simultâneo. Estas sessões, de carácter prático e interactivo, dominam os trabalhos do primeiro dia do Encontro. Com efeito, na quarta-feira, 14 de Março, está prevista a realização de oito workshop. Os temas são muito diversos: abrangem desde a discussão das normas e indicadores da diabetes, à pneumologia, dermatologia, saúde oral, saúde mental e doenças cardiovasculares. Em foco estão também os software Medicine One e VitaCare.
No dia seguinte, é tempo para falar e discutir a qualidade, a medicina baseada na evidência, as propostas para o quarto ano do Internato de MGF, investigação e informática. Sem esquecer os workshop livres sobre rastreio oftalmológico pediátrico e qualidade de vida na Terceira Idade.
Na quinta-feira, haverá espaço para aprender mais sobre “urgências em cuidados de saúde primários”, a prescrição de exercício físico, o controlo da dor em cuidados paliativos, prevenção quaternária e ainda, hematologia (workshop livres).
No último dia de trabalhos, 17 de Março, os workshop continuam a dominar a oferta técnica e científica do Encontro. Violência doméstica e “burocracias em CSP” são os temas de dois workshop livres.
Da parte da tarde, os trabalhos prosseguem com a realização de mais oito workshop
sobre temas técnicos e científicos – desde neurodesenvolvimento e aconselhamento parental ao mieloma múltiplo – a par das sessões dinamizadas pelo GRESP e pelos Grupos Balint.
 
Diabetes tem workshop e mesa-redonda
 
A diabetes é tema de um workshop e ainda de uma mesa-redonda, prevista para o dia 16, a partir das 11 horas. Esta ênfase surge por uma razão muito objectiva: “num curto espaço de tempo registou-se a saída de 14 Normas de Orientação Clínica (NOC), que agora devem ser bem percebidas e criticadas, com vista à sua interiorização pelos médicos de família”, explica Luiz Miguel Santiago, coordenador do Núcleo da Diabetes da APMGF.
Enquanto que no workshop se privilegia o estudo do contexto das NOC sobre diabetes, na mesa-redonda, a discussão incide em temas candentes, como a necessidade ou não de consultas específicas para pessoas com diabetes e a questão dos indicadores que, de acordo com Luiz Santiago, “devem levar-nos a criar a necessidade de estudar a eficiência do que fazemos com e para os diabéticos”.
 
Adelaide Oliveira